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Poeta catarinense
com dedos podres
e mania de flâneur

Autor de "Cá Entre Nós -
Odes de Alusão e Ilusão"

O QUE ERA HISTÉRICO SE TORNOU HISTÓRICO


Nasceu arquiduquesa
      na Áustria.

Foi imperatriz consorte,
      regente interina.

Ou marisqueira
      na Ilha de Itaparica.

Sua biografia é incerta      
e um tanto obscura.

Espiã-dançarina,
      capoeirista, talvez.

Nada sobre ela
      é conclusivo. 

A precursora
do impressionismo
      em terras tupiniquins.

Não há consenso:
      são parcos os fatos.
      e ralos os testemunhos.

Pintora;
      musicista;
             atriz trágica.

Endeusada por uns,
      demonizada por outros.

      Persona por vezes non grata,
malvista nas rodas.

Perita em ciências ocultas,
       assuntos de baixa frequência.

Foi líder de quilombos,
       engajada em militâncias
       e estratégias de resistência.

Descendente das guerreiras icamiaba.
       Cúmplice das múmias sagradas
       de Tejecupapo.

Escandalosa —  alvo
                          para baionetas.
Beligerante —  como se em frenesi
                         de combate.

      Sibilam coisas horríveis
a seu respeito.
      Suspeita do incêndio
de caravelas, da tentativa
de assassinato do presidente.

Dizem que
sequestrou aviões
aos vinte e um.
      Desquitou-se
      aos vinte e três.

E que, aos vinte e cinco,
      primeira de sua linhagem,
deitou ao chão pilares prévios
      para erguer outros, mais novos.

Amiga íntima de Clara Camarão,
                       de Jovita Feitosa,            
                       de Bárbara de Alencar,

de Margarida Maria Alves,
de Carolina de Jesus,
de Leopoldina,

                      de Dinalva Oliveira,
                     de Antonieta de Barros,
                     de Leolinda,

de Teresa de Benguela,
de Maria Auxiliadora Lara Barcelos,

                   de Lota de Macedo Soares,
                   de Georgina de Albuquerque,
                   
de Joana Angélica,
de Maria Quitéria,

                   e de outros tipos perigosos.

        Foi espezinhada,
extraditada dos bailes,
esquecida em masmorras,
lançada aos areais.

       Mas engana-se
quem pensa
que sua memória
se apagou.

Está ainda mais viva
                 que antes,
para além do alcance
de qualquer biógrafo.

Atravessou os tempos
e está aqui presente, hoje,
nesta noite.

Dentro de pouco
       subirá ao banco dos réus
       para rogar uma vez mais
       por sua inocência.

É certo que será 
condenada.

Seus crimes?
       O de existir
       em demasia
       e de subverter
       o imaginário
       popular.

ARQUÉTIPO

À sua passagem
as portas se escancaram
por si mesmas.

Ela atravessa as paredes,
adentra até as alcovas reais,
flagra os ladrões, os cônsules
e os xás, em suas secretas bacanais.

Senta-se à sua mesa e lhes serve bebidas.
Distribui sorrisos nos seus cantos,
exibindo seus dentes sem gengivas.

Cabelos frios que não são seus
cobrem sua cabeça por debaixo
do manto.

Adornos desbotados
e mortalha de farrapos.

Seu caminhar não é mais lento:
ela corre. Açoita as ancas
de um lívido cavalo.

Está com pressa. Alguém,
em algum lugar, fez o chamado.
Ela goza de indiferença.

À sua passagem,
um choro noturno lhe saúda.
Velhas senhoras devoram velas.

E tudo se transforma
nas herméticas famílias,
nos palácios imperiais,
nos balcões da providência.

E tudo ocorre de modo
mais ou menos parecido
nos jardins de inverno,
nos bares ou nos recitais.

À sua passagem,
um coro de uivos
a cortejá-la.

Ela adentra, soturna,
deslizante como um réptil.
Não adota critério algum
e nem faz distinções.
A VAIDADE COMO SUBSTITUTA DA VERDADE

     Por que será que certos indivíduos parecem capazes de dedicar tamanha atenção a si mesmos ao passo em que se demonstram tão profundamente desconhecedores de suas próprias verdades? Ora, se passam tanto tempo a contemplarem-se, mesmerizados, no espelho que projetam diante de si, natural seria é que se defrontassem com algumas questões, digamos, muito específicas acerca de suas próprias existências. E que por conseguinte se conhecessem muitíssimo bem. Mas não - pelo contrário - nesses casos a vaidade é que faz as vezes de verdade, ditando o rigor da moral e o peso dos costumes, operando verdadeiramente como leme e bússola para essas tremelicantes existências.
     É como se aos poucos a vaidade substituísse, em alguns indivíduos, a necessidade de autoconhecimento: a imagem refletida é nítida e vibrante, enquanto a outra, a imagem real, é inextricável e soturna. Embora metódicos em suas frivolidades - já que o culto a si mesmo requer um rigor quase ritualístico - é interessante notar que o mesmo rigor de método não se aplica a eles próprios. A vaidade, nesses casos, é uma rota própria. Mas se confrontados com esta perspectiva, natural é que acuem-se no susto: baque seco do corpo físico de encontro à superfície espelhada que projetaram.
     Haverá de chegar o dia em que, enfastiados desse enlace, ressintam-se consigo mesmos pelo tempo perdido? E quando, por fim, deixarem ceder a máscara ressequida de maquilagem que tão zelosamente compuseram, haverão de reconhecerem-se no rosto de um recém chegado?


EIS A VERDADE

Psicografei um romance inteiro.
Ou seja, este me foi ditado por um espírito errante e transmitido através de minhas trêmulas mãos, os olhos devidamente vendados.
A crítica não me apanhará: qualquer eventual desconforto no que tange às temáticas da obra, qualquer apontamento insidioso em relação à falta de ritmo, à prolixidade, à cacofonia no título, deverá tudo ser creditado ao espírito Autor e não a mim.
Que fique claro, a questão de meu talento pessoal não haverá de ser discutida. Cumpri para com meu ofício de puro e simples receptáculo. Permanecerei intacto.
Mas prevejo cochichos. Lançamento mais ou menos por agora.
Provável pseudônimo na ocasião da publicação.


A VERDADE E A NUDEZ

     ...as larvas apresentam cabeça bem desenvolvida, não retrátil, com peças bucais mastigadoras.            Segue-se o corpo, composto somente de tórax e abdome, formado por doze segmentos e dois pares de pseudópodos. Cada pseudópodo é provido de numerosas garras que auxiliam na locomoção e na fixação da larva no interior do casulo.
      Algumas larvas são sedentárias, vivendo dentro dos casulos ou no interior de tubos fixos; outras são consideradas livres, transportando seus próprios casulos, ou, mesmo, nuas, não fabricando casulo algum.

CRUA

C R U A 
ou 
MANIFESTO INDIGESTO 
ou 
SÓ A ANTROPOFAGIA 
ou 
EM VOSSOS OLHOS 
ou 
CARNE VIVA 
ou 
PARA O BANQUETE 




O caro Oswald já diria: só a antropofagia nos une.
Socialmente. Economicamente. 
Filosoficamente. O artista é um antropofágico por natureza.
Um selvagem. E que prefere a carne quando crua. 
Não o alimente, não cedeis à tentação de nutri-lo: 
ele vai consumir-vos por inteiro. 
Não aproximais em demasia de suas jaulas. É perigoso. 
Ele poderia agarrar-vos por entre as grades. 
Ele poderia se quisesse cuspir peçonha em vossos olhos. 
O artista é bestial. Ele vos vê como matéria-prima, 
e nada mais. Ele vos enxerga num contexto ritual. 
Ele vos vê como algo que se pode picar, cortar, 
desmembrar, esfacelar, engolir. 
Não diga que não vos avisei: o artista é cheio de perfídias.
Constrói teias e habita tocas rasteiras em ravinas profundas.
Se um dia vierdes a cruzar com um deles em seu habitat natural, 
peço para que mantende a calma. 
Histeria é algo que os atrai de longe. 
O mais seguro a se fazer é fingir-se de morto, 
pois gostam mesmo é da carne viva. 
Em hipótese alguma direcioneis o olhar a eles. 
Segurai a respiração. 
Se conseguirdes, haverão de passar reto, 
em absoluto desinteresse por vós. 
Vivereis incólumes o restante de vossos dias, 
reconfortados em vossa modorra, 
a reclamar do tempo, do sal, do sexo, da monotonia de tudo. 
Mas se não conseguirdes, prepara então a vossa carne
e a vossa alma para o banquete. 
E entregai-vos, que toda entrega é doce.
APÁTRIDA

Cada vez mais esfolada,
lacerada, queimada,
enregelada e exausta.
Amo o seu sorriso
sem dentes.

INSIDIOSO

Modula o tom de voz
conforme o espectador.
Personalidade pré-mórbida.
Risco de autoagressão.
Indícios de egocentrismo
elevado.

DECANTADO

Ele tem medo
de tudo - de altura,
cobras, cães, escuro,
morte, confinamento,
doença, amputações,
do lado escuro da lua,
da própria mãe.

PUERIL

Um viveiro de plantas
vira um cenário sinistro:
a dona, uma senhora
de olhar escrutinador,
arrasta um pé, andando
vagarosamente, dando
ordens ao filho arredio
que nunca olha fixamente
para ninguém.

RITA ESTÁ EM DÉBITO CONOSCO



ARAÇÃO


Às seis da tarde credos em cruzes

Acotoveladas de si bemóis violas curvas 

Turvos olhares pandeiros frouxos - couro da pele 

Anjos da Ave voam das granjas, dão canja à janta 

Marias baking meninas faking falsetto sacro 

Milho do pago pagão dourado tempero forte. 

Da flor do sal brotam cheirosas frangas sem penas 

Umbrais de fêmeas, sem mais soleiras, eiras febris. 

Assim, meu anjo clarinho rosa se esgueira à porta 

Torta se mostra sem rumo ou vela, de harpa zarpa 

Afina a corda, pega na corda, acorda cordão. 

Vem sem pecado, benta receita a gente aceita 

Voa, revoa em benzer a proa até à popa, muda de vento 

Poema invento, 

Gregoriano o canto o manto o mato o santo

Da mata a seiva seita a saliva 

a vida avulta avulsa afoita moita 

Carne moída de surra e sina, carne dorida, 

Carne pra fome, carne da vida.


de Rita Cassia Martins



          Que louca. Impossível não simpatizar de imediato com o autor das linhas acima. Não é exagero dizer que Rita impressionou os jurados do I Concurso Novas Vozes da Poesia com o seu Aração. Texto alegórico, cadenciado, infenso às estéticas clássicas, permeado de símbolos e conotações irônicas. Através dele mostrou ser conhecedora de poesia, segura de sua técnica, expôs com graça seu farto vocabulário e despertou curiosidade geral acerca de suas obras prévias. Aração desbancou outros sessenta e sete textos concorrentes.
          Há algo de intrinsecamente feminino na simbologia a qual o poema se propõe, mas onde ancorar esse conceito? Talvez seja melhor deixá-lo à deriva, errante conforme nos sopra o que há de feminino na linguagem. Roger Bastide alertou para este perigo: "No fundo, a ideia de procurar uma poesia feminina é uma ideia de homens, a manifestação, em alguns críticos, de um complexo de superioridade masculina." E recomendava: "Diante de um livro de versos, não olhemos quem o escreveu, abandonemo-nos ao prazer."
             Para além de seus temas, fica evidente que a autora escolheu milimetricamente o som de cada frase, de cada rima pouco óbvia, e que estudou a musicalidade dos termos como se arasse com afinco o próprio texto. Texto para ser lido em voz alta - em tom soturno de preferência. Tudo nele está onde deve estar: a sensação é a de terra lavrada com persistência. Mas o que se consolida como virtude também faz com o que o leitor de Rita fique em standby: e agora, para onde é que ela vai? Quem é essa desvairada? Já disse tudo? 
              E Rita não falou mais nada. É uma mulher concisa. Na noite da premiação, de preto dos pés à cabeça, sussurrou: "Estou sem palavras." A verdade é que o leitor de Rita fica insatisfeito. Aração já não nos basta. Que o anjo é clarinho e rosa nós já sabemos, mas de que matéria é feito? Voa, não voa? É mais bento ou mais impuro? Queremos saber mais.
           Como já disse Antonio Candido, e como bem sabem os novos poetas, a literatura não existe na gaveta: só vive como relação inter-humana, quando se completa o triângulo autor/obra/público. Outros virão, Rita, não virão? Aguardemos. 

MALDITOS ESCRITORES

É muita confusão.
    Ou antes: tentativa de diluir
    diferenças. Num golpe
    de pena.

O intelectual reproduz
    discursos. O povo
    produz matéria real.

Outra sutil alteração:
    "eles" e "nós".
    Fígado e intestinos
    da realidade.

Intenção do narrador:
    levar o leitor
    a compadecer-se.

Corpo a corpo
    com a vida.
    Refletir
    sem floreios.

A resposta está em mim
      e está em ti, meu irmão,
      que caminhas ao meu
      lado.

Chapinhamos
     no lodaçal
     de velhas palavras.

Um tempo
     estático.

A minha e a tua suspeita
    de que pouco a pouco
                   nos fizemos
                        inimigos.

PRESTIDIGITAÇÃO

Fui. É certo que fui.
    Numa outra época,
                  fui antigo.

    Fui ilusionista.
         Fui prestímano.
              Fui galanteador.

         Faquir
    envolto 
 em véus.

A Pitonisa 
          dos Tripés.

  Graduado em 
    escapologia 
     com ênfase 
        em celas,           
         caixotes 
          e barris, 

Labaredas 
    ou tanques d'água,
algemas e camisas de força.
   Nada me continha.

    Hábil em conluios
e aparências. Cortinas
   de fumaça espessa.
Espelhos, cadafalsos.

Se resta ainda
    algum resquício?
Do que permaneceu,
    registro aqui:
    pouco, 
    muito pouco.

   Algumas aptidões tolas,
alguns livros de truques.

Certo talento
     para o logro.
Certa rapidez
    de mãos. 
    E nada mais.

Se resta ainda
    alguma secreta
                 glória?

    Do que ficou
transcrevo aqui:
enganei a todos.
Inclusive a mim.

Embusteiro
    mais convicto
               não há. 
Sentes? À distância?
Nas conjecturas?
No sal, no ferro?
Nos mínimos grãos?
Ou não sentes?

E supões que as lonjuras
não gritem coisas.


Tão fugaz se te imagino
translúcido e cheio de si.
Como um balde de infinito.


Imagino-te num convés:
coqueiros ao fundo,
balanços da proa. Que cena.


Um belíssimo carpete
para velhas passagens.
E guano das albatrozes
para as tantas que virão.


Ó, soníferas ilhas.
Como fede o paraíso!
À deriva das dualidades:
por um lado, a necessidade de transgredir, desviar, subverter o que quer que seja, 
para, no instante seguinte, revestir-se até o pescoço do mesmo senso comum
que com tanto afinco combatera no momento anterior.

.

Quem é você?

As palavras são roupas que vestimos ou tiramos?

A nudez da alma tem algo de obsceno?

E a inspiração, o que é?

Costuma pensar através de símbolos e metáforas?

Já imaginou a possibilidade de um imenso cataclismo?

Nesse caso, o que é que salvarias dos escombros do mundo,
tua força ou a tua inteligência? Tua cultura ou tua liberdade?

Gostaria de ter vivido numa outra época? Qual?

Como é que descreveria algo que grita?

Acha que o amor de hoje é mais antigo que o de ontem?
Ou é mais novo?

Percebe como dramatizo os trincos das portas?

E em como exteriorizo o interior das coisas?

Notou o ritmo capcioso desta entrevista?

Diz-me, qual tragédia grega tu serias?

Que animal gostaria de ser daqui para a frente?

Você rói unhas? Fuma demais? É contra o fumo?

Sente que a noção do tempo é convencionada?

E que as coincidências têm algum significado?

Acreditaria se eu dissesse que já sei a tua resposta?

Notou que só falo sobre rios e corredeiras?

Sabia que me pagam para enxugar as frases dos outros?

Pergunto-me-lhe: será que basta ser constante nesta altura da vida?

Será que nesse momento em algum lugar alguém se pergunta o mesmo?

Enxerga bem no escuro? Costuma bancar o Sartre?

Escreve cartas?

Acha que estou fazendo perguntas demais?

A loucura dos outros mais te assusta ou mais te atrai?

E a inexatidão nos outros?

Concorda que a subida por vezes só começa no topo do monte?

E que só em silêncio é que se compreende o vigor de uma dança?

E que a solidão tem algo de inerente à natureza do homem?

Que você poderia me perder? Que eu poderia te perder?

E que o passado talvez fosse uma impressão?

Será que no fundo a boa razão é mesmo uma coisa boa?

Percebe que sei mais de ti pelo que deixas de responder?

E que mostro mais de mim por aquilo que me esqueço de perguntar?

Qual é a lembrança mais antiga de nós dois?

Nus, a cortar águas, à beira do Douro? Uns riscos de dourado no azul?

Ou o agora?

As palavras apertam-te a cintura? O pescoço?

O sexo? A imaginação?

As palavras agarram-te pelos cabelos?

SAÍDA DE CAMPO

Na maior cidade do país, 
assisto aos navios 
que passam. 
Atento aos presentes, ali, 
a desfrutar do mesmo espetáculo. 
E eu, bulhufas. 
De costas para o palco esmiúço a multidão 
com cirúrgico olhar de soslaio. 
Não quero que me percebam enquanto persisto 
na busca. 
Confiro: aquele ali, não, 
aquele outro também não pode ser, 
um por um dos rostos enfileirados. 
Será aquele lá atrás do outro que está por detrás? 
Ou o que passou e julguei não ser pelo andar seguro?
Impossível que fosse. Quase me cegam as luzes da ribalta 
mas insisto na pesquisa com ímpeto acadêmico. 
Os navios vão sumindo de cena. 
Meu coração aos pedaços nos conveses.

NOVELO DAS VONTADES

Persigo
     um mesmo furor.

Não, refuto a ideia:
Retomo 
      o ponto 
          de partida.

Afrouxo 
      o laço. 

Desanuvio
       a nuvem 
             sobre a serra.

Àquele rosto, 
          o que direi.

Direi? Direi: 
           flutuo, assim
              entre as vagas.

Ar de sonso
               a fingir bocejos.

 Como quem 
  não quer 
nada.

Perseu estático
                  à beira do labirinto.

      Sem saber se entra
ou se sai 
           sem ser notado.




Daqui a sessenta anos 
estarei morto e serei talvez lido.
Tu estarás morto também.
Não será lindo?
Nós dois, de jazigo a jazigo,
a confabular pela eternidade adentro.



O JÚRI

DELIBEROU:

IMPÁVIDA IGNORÂNCIA

Sim, estou certo de que adormeci
enquanto anotava alguns auspícios.
E lá estava a mesma serpente. Aquela,
com cabeça de leão. Estática entre duas
meias-luas de bronze, fitava-me enquanto
mordiscava a lâmina de uma espada. Sibilava
em silêncio. A língua perversa a auscultar tudo.
Eu tremia da cabeça aos pés. Mas uma seta vinha
rasgar o silêncio. O guincho de uma águia próxima.
Um pentáculo desprendia-se das garras da águia e caía
bem entre as coxas dum velho coxo. Outra seta. Não pude
conter-me. Não era, afinal, a primeira das vezes. Tomado de
euforia, agarrei a serpente pelo rabo e girei-a no ar. Meti a mão
entre as coxas do ermitão e apertei com força. Ele gritava, gritava,
o pobre infeliz. A serpente deslizava até mim e se enrolava em meu
tornozelo. Eu tentava desvencilhar-me coiceando o ar com veemência.
Atraída pelo movimento, vinha a águia e punha-se a pairar sobre a cena
como algum deus rubicundo de raiva e com cara de pouquíssimos amigos.
Sensação de já ter visto tudo aquilo antes, só que de um outro ângulo, sentado
em meio à platéia ou atento por detrás dos bastidores. Aí então subitamente
compreendi: era como se um grande julgamento estivesse a acontecer ali.
Sentia-me como se desvendasse algum tipo de segredo e buscasse a
a palavra exata para uma lacuna num gigantesco poema cifrado.
Mas atenhamos-nos aos fatos. O ermitão representaria
a lide em questão. A serpente, a intenção por detrás. 
Todo o impulso destrutivo de uma natureza
rastejante, prostrada ali bem ao meio
de duas verdades opostas. Onde as
setas seriam os prenúncios
necessários entre
um rito e outro.

C.G. - 3

                    Mas aqui todos os movimentos são pré-determinados. Não se trata dum espetáculo de cena onde poder-se-ia apostar num golpe de improviso que disfarçasse o erro. Não: erra-se e as cortinas se fecham, de modo que não existe nada a se considerar senão a linha à frente, a próxima proeza mais incrível que a anterior. Como um atleta atônito nas bordas das vagas, ousado e pernalta, recém acostumado às vertigens. E como é possível que se espere que alguém seja ao mesmo tempo forte e flexível quando estes dois extremos nada dizem sobre o outro, nada versam sobre o seu oposto e só por um absurdo da lógica é que se coadunariam numa exata circunferência? Pois eu desafio as leis da lógica através da minha inconcebível vontade. Eu desafio até mesmo as leis da gravidade, então posso tudo - penso. Trêmulo, lanço-me sobre o ar aberto - o peito ressoa, a corda treme, o público em transe. Lá embaixo está tudo o que já fui e todos os lugares pelos quais já andei, aqui em cima só há o equilíbrio, a tentativa e o tormento do equilíbrio, o desafio de permanecer de pé.
                     Cabra montesa de patas musculadas e condicionadas nos cumes dos alpes. Mas um deslize pode ser fatal: basta um ligeiro escorregão e tudo estará terminado. Se me distraio, mesmo que por uma fração de segundo, e deixo-me inebriar pelo sucesso da façanha que acabo de executar, perco o momento exato em que deveria iniciar a outra, a seguinte, ainda mais importante. Este é um momento perigoso e propício a quedas. Meus talentos pouco importarão neste infame instante. A frieza de minha precisão, a maestria de meus saltos - nada disso ficará para a história. Serei só lembrado pelo o que não fui e o que de mim já estava abaixo. Serei só lembrado pelo momento de minha queda, pelos requintes dela, e por o que vier depois.

EGOCENTRÁGICO

Eu,
peça indispensável do meu próprio destino,
primitivo, largado à própria sorte,
à mercê dos instintos.

Eu,
ao mesmo tempo carrasco e refém
de todas as minhas vontades.

Eu,
parte inerente de uma trama qualquer,
sem registro prévio, sem antecedente algum.

Eu,
ilusionista sem repertório de truques,
dançarino de véus, charlatão quase convincente.

Eu,
amansado aos gritos e aos socos,
às duras penas dos bons conselhos.

Eu,
profetizado nas barbas do profeta
mas sujeito a grosseiros erros de interpretação.

Eu,
declamado numa entonação ridícula
de uma boca infame, numa língua morta,
à uma platéia atônita.

Eu - justo eu -
pleno de tudo o que um dia me faltou
e já enfastiado de nostalgia por aquele que fui.

O SILÊNCIO

Desdobro as mangas dos ritos
e penetro a fundo neste umbral.

Conheço-o bem.
Já estive aqui.

Percorro os corredores
à meia-luz de velas negras.
Da consciência de estar sendo
o axioma incomunicável.
O próprio peito riscado à faca.

Existo,
e por isto não existe o nada.

Só um enrolamento e um
desenrolamento.
Sucessivos e indefinidos,
simultâneos e perpétuos,
espirais que giram de encontro
ao seu próprio contrário.

O vazio inexiste.
Tudo aqui está ocupado.
O infinito fala de si a si mesmo,
e tem tanta cor a memória.

Quer seja no fixo ou no volátil,
no visível ou no invisível:
a águia, o leão,
o touro e o homem
andam pelos mesmos caminhos.

O que está em cima parece
ou é igual ao que está debaixo.

Como é que me atrevo
a recitar em voz alta estes
segredos?
O quão tolo e incauto pareço?
Se não sou, ainda, um iniciado.

Por ora sei de pouco.
Mas fui convocado a saber
de tudo. Reunir-me
para só então
expandir-me.

Desafiar a lógica obscura;
Confrontar a áspide sibilante;
Confundir a roda do destino;
E elaborar um novo ritual.

Serei a taça e a adaga.
Serei o sino e o cinzel.
Serei o próprio hierofante.

Esta noite, serei o altar.
Aprendo sobre as coisas só depois
de viver o contrário delas.

Descubro sobre o perdão só depois
de eu próprio ter sido muitíssimo cruel.

Só conheço a compaixão após anos e anos
de descaso para com tudo.

E descubro-me humano bem depois
de certas vaidades haverem me engolido.

Em mim habita todo o bem
e todo o mal deste mundo.
Em exatas medidas que se coadunam.

Como algo irrespondível
que fingi e deixei por dizer.

Em mim toda a vileza e toda a realeza.
Total escória mas em vias de redenção.

Sou o melhor 
e o pior de todos
em tudo o que faço.

Mesmo que tormenta.
Ainda quando mansidão.



___


Teço minha bandeira.
A metade branca é cheia de si.
A metade negra é inconsolável.
E hasteio-a aos mortos em vida.
Aqueles, que as ondas levaram
e de que o vento não sabe mais
notícias.

Os fantasmas do pensamento
que nunca descansam.
Que descansem,
agora.


___


Aprendo sobre as coisas
só depois de perdê-las por completo.

Dantes não poderia supor
quanta falta me fariam.

Enfastiado que estava
de tanta e tamanha presença.

Que deixava de senti-las por perto.
As coisas. E sentia-as melhor
na distância.

Dantes não poderia dizer
o quanto é que me tocavam.

E se de fato tocavam ou não, não saberia.
De tão enfadado pensava-me.

Quando as vejo ir ao longe
é como se as visse pela primeira vez.

Quando por fim constato que se foram
é como se finalmente as visse.

Aprendo sobre as coisas
no momento em que as quero de volta.

Tarde, entretanto,
para reavê-las.